Em 2016 eu iniciei minha jornada com “as outras cores”, o que eu chamava de “outras cores”, eram as cores que não eram índigo.
Eu estava iniciando meus estudos com as chitas, estamparia de mordentes, motivada pelas possibilidades e as cores lindas que esta técnica proporciona. Logo que iniciei, já nos 2 primeiros meses, fui convidada a fazer parte da edição da Bloom Brasil, a revista de Li Edelkoort, dirigida no Brasil por Lili Tedde e Li Edelkoort. Fiquei muito feliz, mas foi um grande desafio, porque eu era apenas uma iniciante de pouco mais de 3 meses fazendo chita. E logo chita, essa técnica milenar e desafiadora, que tem tanta história e já colocou de joelhos grandes mestres da estamparia.
Na época que iniciei só tinha eu no Brasil que fazia chita e mesmo no mundo, eu não conhecia mais que 2 ou 3 pessoas que tinham trabalhos atuais para observação. Então me debruçava a observar chitas do século XVI, XVII, XVIII, XIX, porque a partir daí as chitas foram raleando, até quase desaparecerem.
Para o trabalho da edição da Bloom Brasil resolvi então olhar meu entorno e utilizar o que a arborização urbana poderia me oferecer.
E aí iniciou um projeto que chamei de “#tingindo na urbe”.
# tingindonaurbe era um projeto de observação do meu entorno, do que o meu território poderia me oferecer, com todas as suas delícias e limitações. Utilizei então Monstera deliciosa para estampar, urucum da frente da minha casa; minha amiga me trouxe folhas de teca, Tectona grandis da fazenda do namorado, Patrick, local onde fomos depois fazer as fotos, Fazenda Coruputuba, em Pindamonhangaba. Usei outras coisas, cascas de cebola do supermercado aqui ao lado... enfim, eu era uma iniciante fazendo painéis gigantes de estamparia de chita para a revista da Li. Mas esse projeto inicial me despertou a observação da minha rua, dos meus caminhos, dos entornos e da cidade, e eu sempre estava procurando plantas novas para utilizar no tingimento. E assim fui descobrindo e utilizando o meu entorno para colorir: picão, pau-ferro, melaleuca, casca de coco, pitanga, goiaba (folhas e frutas), 7 copas, folhas de aroeira... No início, a Keila me trazia muitas ervas da Coruputuba, então tingia com várias coisas de lá, que hoje já não recordo todas, porque eram várias.
Viver observando as plantas do meu entorno passou a ser um exercício diário, como é até hoje. Infelizmente, nunca consigo uma romã das ruas de São Paulo. São Paulo tem muitas romãs, mas eu só as vejo verdes, pois as pessoas não deixam amadurecer. Amadurecer é um processo de paciência e é difícil tê-la, principalmente quando observamos algo desejoso, o impulso é arrancá-lo ainda verde, para depois jogá-lo fora, porque as nódoas não te deixarão saborear.
No início a gente é assim, enciclopédico, quer tudo, um monte de plantas diferentes, mas com o tempo a gente vai selecionando e se tornando especialista, selecionando as preferências e aprendendo a trabalhar, de verdade, com cada uma, pois cada planta é única. Um Corpo. Território. Específico, com extrações específicas, formas, jeitos, macetes, temperaturas, enfim, porque cada planta é única em seu corpo. A mesma planta pode oferecer cores diferentes a partir de extrações diferentes, por exemplo.
Catuaba é uma dessas plantas, que vai liberando seus composto dependendo de como se faz a extração e do que se coloca no meio para extrair. Extrações diferentes, dão cores diferentes, porque no processo de extração, as enzimas vão catalisando as moléculas e transformando a composição. Quinonas se transformam em nafto e antraqui, ou vice-versa, ou em peróxido e açucares; taninos em açucares e ácidos mais simples; cores vão amadurecendo, tomando corpo ou perdendo corpo, a depender de como atuamos na extração...
E é através desse molejo que a natureza faz para preservar a coesão da vida, que podemos ir moldando os compostos para retirar o que é importante para o projeto; contudo, isso só é possível quando conhecemos e nos enlaçamos com o que estamos trabalhando. Enlaçar também é coesão, é aliança.
Como o trabalho dos corpos biológicos são muito dependentes das enzimas e sendo elas, muito sensíveis ao meio que está ocorrendo a catálise, o entendimento do processo é um território de muitas possibilidades.
Mas não é só extração que faz uma cor. As cores também são afetadas pelo meio externo. Épocas do ano, fases da lua, excesso e abstinência hídrica, incidência solar, horas de sol, poluição, qualidade de solo, pressão atmosférica; tudo isso incide sobre as cores, pois o meio ambiente e o clima também determinam a produção das moléculas.
A maioria das moléculas que utilizamos para extrair cores fazem parte do metabolismo secundário dos corpos e suas funções são de proteção ao organismo; de fatores abiótico, como dos raios solares, mudanças de temperaturas; e de fatores bióticos, como patógenos, parasitas e predadores. Também produzem hormônios. Contudo, o que pouco se fala é que elas também fazem parte do sistema primário, como as clorofilas, que são responsáveis pelo sistema energético. E de fato, as cores são as maiores reguladoras de energia de um corpo.
Essa é a maior função das cores, regular o quanto um corpo absorve de energia radiante, para fazer seus processos próprios, o quanto reflete para o meio e o quanto emana de radiação do próprio corpo. Quando digo corpo, digo desde um corpo menor que um átomo até o maior corpo, tipo um buraco negro, ou mais.
E falando em defesa e produção de moléculas aromáticas, já que a maioria das moléculas que utilizamos para colorir são aromáticas ou possuem algum radical aromático na composição, como os carotenoides; que lembrei de uma publicação da Universidade Federal Rural de Pernambuco, feita por Júlio Marcelino Monteiro et al., com título: “Taninos: uma abordagem da química à ecologia” em que ele cita o trabalho de Heldt, “Plant Biochemistry and Molecular Biology, University Press Oxford, 1997, em que Heldt cita, que nas savanas africanas existe um tipo de antílope, Cudo, que se alimenta de folhas de acácia. Quando os antílopes começam a predar demais, a acácia que está sendo predada, libera etileno, um hormônio vegetal, que avisa as árvores vizinhas sobre os predadores. Então essas árvores sintetizam rapidamente tanino, coisa de 30 minutos, de maneira tão elevada a quantidade, que se os antílopes continuarem a comê-las, poder chegar a morrer. Imagina, em 30 minutos, a quantidade de tanino produzido, que pode matar um bicho que pesa de 120 a 270 kg. Achei muito incrível isso, porque tendemos a acreditar que as plantas são silenciosas, mas elas são conversadeiras. Plantas também são Mercúrio. E guerreiras. Montam um exército em 30 minutos. Isso é chita também.
Quero escrever mais sobre as funcionalidades das cores e como as cores podem afetar nosso meio ambiente.
Mas iniciei esse texto relembrando o tingindo na urbe, para também introduzir minha nova coleção que nomeei Cor. Território.
E por que Cor. Território? Bem, porque é um pouco do retorno do tingindo na urbe, dessa homenagem que faço à São Paulo, olhando para essa cidade com um olhar de amor, carinho, afeto, vendo sua beleza para além do capital, suas árvores, sua arborização urbana, valorizando o pouco que restou de uma imensa floresta tropical úmida, para saudar Deusas e Deuses da chuva, saudar a terra que um dia foi da garoa, a terra que me abrigou em 98, com todo seu amor. Eu amo São Paulo.
Cor. Território é uma maneira de ver São Paulo, de conhecê-la, de enlaçar-me a ela. Cor. Território também é cor específica, cor submetida à São Paulo, que é diferente da cor do interior. Sim, como disse lá em cima, o meio interfere no corpo, que interfere na cor. Isso até pode parecer besteira, mas têm muitas publicações que analisam isso, a interferência do território em corpos biológicos e compostos bioquímicos. Inclusive, a gente tem uma história muito famosa sobre território e compostos bioquímicos, que é sobre a quina, e que, inclusive, levou ao primeiro corante têxtil sintético, malveína, por causa da especificidade da quina utilizada para o remédio.
Cor. Território sou eu refletida em São Paulo, minhas memórias e meu pertencimento através das cores de suas plantas.
Cor. Território é meu olhar sobre São Paulo. É específico. Cor. Território é a memória da cidade, é também um inventário, um memorando de São Paulo na década de 20 do século XXI, uma maneira de homenageá-la, saudá-la, memorá-la e rememorá-la, através da minha subjetividade. Cor. Território se inicia agora, sem pressa, porque não quero apanhá-la verde e sim saborear seu fruto maduro.
Cor. Território é para conhecer São Paulo comigo, através de suas plantas, suas terras e suas cores naturais e eu.
Bem-vinda a essa coleção – Cor. Território
Marina Stuginski é quem emana, reflete e escreve este texto.
Sendo Marina autora do texto, é necessário pedir permissão e dar créditos ao compartilhar.
as imagens são propriedades de marina stuginski.
Comments